O cenário de violações de direitos de adolescentes em privação de liberdade é um desafio a ser superado no sistema de justiça juvenil e no sistema socioeducativo brasileiros, ainda que os direitos desse público sejam garantidos com absoluta prioridade na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em outras leis nacionais e convenções internacionais.
Nesse contexto, com a intenção de promover e registrar um momento histórico na luta pelos direitos desses adolescentes e, especificamente, celebrar a conquista alcançada com o Habeas Corpus (HC) coletivo nº 143.988, o Instituto Alana lança a publicação “Pela dignidade: a história do habeas corpus coletivo pelo fim da superlotação no sistema socioeducativo”, que resgata a persistência de órgãos do sistema judiciário, como as defensorias públicas, e da sociedade civil na busca por alcançar essa realidade.
Em agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, no julgamento do referido HC, o fim da superlotação em unidades socioeducativas em todo o país, uma decisão que reconhece que toda a população dessa faixa etária deve ter seus direitos fundamentais assegurados.
O processo foi levado à corte pela Defensoria Pública do Espírito Santo para questionar a superlotação no estado e, posteriormente, foi estendido aos demais estados brasileiros. A ação contou com a participação de diversas organizações da sociedade civil como amicus curiae (amigo da corte), como Instituto Alana, Conectas Direitos Humanos, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
Para o Instituto Alana, entre as decisões recentes do STF, o HC 143.988 é, provavelmente, um dos julgados mais importantes sobre direitos de crianças e adolescentes nas últimas décadas. “O entendimento do STF fortalece a jurisprudência da Suprema Corte no reconhecimento do dever constitucional de garantir os direitos de crianças e adolescentes com prioridade absoluta e afasta o sistema socioeducativo de uma lógica punitivista. A decisão abre caminhos para a qualificação da política e para que outras alternativas sejam pensadas, como o cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e, principalmente, o fortalecimento de políticas de prevenção para impedir que meninas e meninos cheguem no sistema socioeducativo”, comenta Pedro Mendes, advogado do Instituto Alana.
Entre as vitórias da decisão, está a exigência de que os estados adotem as alternativas que forem necessárias para impedir a superlotação, o que culminou na criação de sistema de central de vagas em diversos estados, de modo que se tenha uma pessoa por vaga. Assim, para admitir uma nova internação, seria preciso liberar a vaga de um adolescente.
O racismo e as desigualdades sociais, econômicas e de gênero são situações estruturais refletidas no perfil de adolescentes das unidades socioeducativas do país: 59% são negros, 81% de suas famílias têm renda salarial entre “sem renda” e “menos de um salário mínimo” e 72% dessas famílias têm entre quatro a cinco membros, segundo Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo que trazem dados de 2017.
Em sua maioria, tais ambientes são superlotados, insalubres, com alimentação inadequada e insuficiência de condições mínimas de higiene e habitabilidade. Como afirmam as advogadas Mayara Silva, Thaís Dantas, Letícia Carvalho e Laura Gonzaga em artigo na publicação, a compreensão do STF sobre a superlotação é paradigmática “por reafirmar que as situações de insalubridade e violação de direitos causadas pela superlotação são especialmente graves no contexto da infância e da adolescência, tendo em vista a especial condição de desenvolvimento dessa população. O propósito socioeducativo da medida de internação não pode ser observado se não há condições materiais, humanas e estruturais mínimas que garantam a preservação mais básica dos direitos de adolescentes e jovens, e essa deturpação de propósito gera danos irreversíveis a pessoas ainda em formação”.
O Defensor Público do Estado do Espírito Santo, Hugo Fernandes Matias, observa que “a decisão proferida pelo STF nos autos do HC 143.988 contempla a maior política pública para a promoção de direitos fundamentais de adolescentes e jovens privados de liberdade desde o estabelecimento do ECA. Aliás, somente após a intervenção da Suprema Corte podemos falar que o sistema socioeducativo nacional observa os parâmetros da Constituição de 1988. Sem dúvida, trata-se de decisão singular, com possibilidade de servir de parâmetro inclusive para outros países da América Latina”. E acrescenta: “o consórcio entre entidades de defesa de direitos de crianças e adolescentes, defensorias públicas e sociedade civil em geral foi fundamental para o sucesso do processo junto ao STF”.
O livro conta com uma reportagem sobre a superlotação no sistema socioeducativo e diversos artigos que incluem reflexões de especialistas do Instituto Alana, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Conectas Direitos Humanos, além da OAB/RJ, das Defensorias Públicas dos estados da Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Sergipe e do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias estaduais e distrital.