Garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes com absoluta prioridade inclui zelar pela vida, saúde e integridade de adolescentes e jovens inseridos no sistema socioeducativo brasileiro. Diante de um cenário de desigualdades e vulnerabilidades de grupos historicamente marginalizados na sociedade brasileira – como os adolescentes em situação de restrição e privação de liberdade –, acirrado ainda mais pelos impactos de mais de dois anos de pandemia, o Instituto Alana está apoiando, por meio do projeto Justiça Juvenil, o lançamento de duas publicações sobre o tema.
O relatório “Covid-19 e Sistema Socioeducativo – Panorama Nacional do Primeiro Semestre de 2020”, coordenado pela Coalizão pela Socioeducação, rede de organizações da qual o Instituto Alana faz parte, traça o cenário da pandemia no primeiro semestre de 2020 e seus impactos no sistema socioeducativo. O material apresenta dados reunidos a partir de pedidos de acesso à informação realizados às secretarias responsáveis pela execução de medidas socioeducativas de privação de liberdade nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, além de contar com informações prestadas por órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura.
Apresentando um panorama minucioso sobre o sistema socioeducativo dos estados, como o número e gênero dos adolescentes atendidos, o número de estabelecimentos socioeducativos e o índice de lotação das unidades, o material identifica os desafios e estratégias iniciais utilizadas por cada localidade nas adaptações necessárias ao enfrentamento da Covid-19, buscando demonstrar a situação do sistema socioeducativo nesse período específico.
De acordo com dados do Conselho Nacional do Ministério Público, em 2019, mais de 18 mil adolescentes estavam em privação de liberdade no Brasil, em contrapartida à capacidade de lotação de 16.161 vagas. Um mapeamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela que, até o dia 31 de agosto de 2022, 16.213 infecções de Covid-19 foram confirmadas dentro do sistema socioeducativo (4.183 vítimas eram adolescentes e 12.030 eram servidores), totalizando 122 mortes, todas de servidores.
“A privação de liberdade, por si só, gera situação de vulnerabilidade, uma vez que consiste no distanciamento familiar e comunitário de adolescentes em fase de desenvolvimento. Tal vulnerabilidade, somada à Covid-19, tem o potencial de gerar impactos negativos não apenas aos adolescentes em restrição de liberdade, mas também para funcionários, educadores e familiares”, destaca o relatório.
O material ainda apresenta medidas apresentadas pelo CNJ para a redução dos impactos da doença no sistema socioeducativo durante a pandemia e informa se os estados as adotaram. Entre elas, destaca-se a elaboração de ações coordenadas entre as áreas da saúde, assistência social, educação, cultura e segurança pública para proteção e segurança da comunidade socioeducativa (18 estados e o Distrito Federal alegaram ter adotado alguma medida nesse sentido); higienização e cuidado nas unidades de atendimento (16 estados e o Distrito Federal alegaram ter adotado); e ações de proteção para os profissionais que atuam no socioeducativo, que, em razão do deslocamento para o trabalho, ficaram mais expostos à contaminação pelo vírus (16 estados e o Distrito Federal alegaram ter adotado).
Entre os desafios que precisam ser enfrentados, o relatório ressalta alguns, como a necessidade de aprimoramento das audiências virtuais (um procedimento novo no âmbito da justiça juvenil e que, por isso, apresenta gargalos que podem ocasionar violações de direitos processuais); e a necessidade de fiscalização do atendimento socioeducativo que, por conta da pandemia, passou a ser realizada, em sua maioria, remotamente, comprometendo sua efetividade e, assim, também a garantia da dignidade humana.
O informativo “Disparidades no sistema socioeducativo em tempos de Covid-19”, por sua vez, é uma realização da Afro-Cebrap, financiada pelo Instituto Alana. O material procura explorar o cenário da pandemia de Covid-19 a partir dos impactos no sistema socioeducativo e de uma análise do perfil dos adolescentes, principalmente considerando o fator racial.
Dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) de 2019 mostram que 40% dos socioeducandos que cumprem medida de internação são negros. Desde 2013, ano em que começou a ser disponibilizada essa informação no relatório, o número de adolescentes pretos e pardos no sistema socioeducativo sempre foi mais expressivo do que o de outras raças.
Com pontos em comum, ambas as pesquisas destacam problemáticas similares: os dados sobre o sistema socioeducativo são marcados por ausências ou insuficiências. Isto é, os dados ou não são disponibilizados com transparência ou, quando são, desconsideram questões metodológicas para compreender questões de gênero, raça, sexualidade e outros marcadores sociais importantes para o monitoramento da política socioeducativa no Brasil e para a realização de análise e avaliação de políticas públicas.
Por exemplo, o levantamento do Sinase, documento estatal divulgado anualmente que é a principal fonte do panorama do sistema socioeducativo a nível nacional, teve sua última edição em 2019, contando com dados de 2017. Os anos de 2018 a 2021 não contam com levantamentos anuais, o que é destacado pelas duas pesquisas como um ponto grave, visto que impediu o monitoramento do sistema durante um período de muitos riscos, como foi o da pandemia de Covid-19.
“Ambientes de privação de liberdade são lugares de extrema vulnerabilidade, e o Estado tem o dever de zelar pelos direitos de adolescentes nessas condições. Durante a pandemia de Covid-19, um período que acentua essas vulnerabilidades, a ausência de dados e de uma gestão efetiva em nível nacional do sistema socioeducativo demonstram que o Estado não tem cumprido suas obrigações com esses adolescentes. É urgente que dados que considerem marcadores das diferentes adolescências brasileiras – raça, gênero, classe social e sexualidade – sejam disponibilizados e, a partir deles, possa ser pensado, conjuntamente entre Estado e sociedade civil, o aprimoramento da política de atendimento socioeducativo no país”, destaca Pedro Silva, advogado do Instituto Alana.
Os materiais “Covid-19 e Sistema Socioeducativo – Panorama nacional do primeiro semestre de 2020” e “Disparidades no sistema socioeducativo em tempos de Covid-19” estão disponíveis gratuitamente para download (aqui e aqui).