Author: fernanda-miranda

Cinco crianças estão sentadas, uma ao lado da outra, em uma mesa numa sala de aula. Elas usam tablets e celulares.

Garantir o direito de acesso à internet a crianças e adolescentes é um importante instrumento para que outros direitos desse grupo possam ser efetivados, como a liberdade de expressão, o lazer e a educação. Em uma vitória para as infâncias, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional a Lei 14.172/2021, a chamada Lei da Conectividade, que dispõe sobre a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, aos estudantes e professores da educação básica pública.

Apreciado entre os dias 24 de junho e 1º de julho, o julgamento determinou que cerca de R$ 3,5 bilhões devem ser repassados a estados e municípios para assegurar a compra de equipamentos e a contratação de pacotes de internet para as redes públicas de ensino. O ministro Dias Toffoli, do STF, estipulou o prazo para a aplicação dos recursos até 31 de dezembro de 2022.

O Instituto Alana atuou na ação como amicus curiae (em latim, significa “amigo da corte”, e refere-se quando uma instituição ou pessoa física, externas à causa, contribuem com conhecimentos a fim de fornecer subsídios para decisões judiciais), com sustentação oral feita pela advogada e coordenadora da área jurídica do Instituto, Ana Claudia Cifali. 

“O acesso de crianças e adolescentes à internet é profundamente desigual no Brasil. Pesquisas apontam que cerca de 3 milhões de brasileiros entre 9 e 17 anos não possuem acesso à internet. Ainda, mais de 16 milhões viviam, em 2019, em domicílios com condições de acesso precárias e insuficientes para o ensino remoto. Esse cenário confere ao Brasil a pior colocação no ranking mundial de número de computadores por estudante e a 52ª posição no fator conectividade das escolas”, diz trecho da sustentação oral da advogada. “A Lei da Conectividade, ao buscar promover o amplo acesso à internet aos alunos e professores da educação básica pública, une-se às disposições legais nacionais e internacionais em prol da realização dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.”

A decisão foi proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6926, proposta em julho de 2021 pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Em dezembro de 2020, o Projeto de Lei (PL) nº 3.477 de 2020, de autoria de mais de 20 parlamentares, havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados. No entanto, em março de 2021, o chefe do Executivo vetou integralmente o PL, alegando que não apresentava estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro. Em resposta, no início de junho, o Congresso Nacional rejeitou o veto presidencial, instituindo a Lei nº 14.172/2021, publicada em 11 de junho de 2021, que culminou no ajuizamento da referida ADI. 

Em seu voto, o ministro relator Dias Toffoli ressaltou a importância do acesso à internet para a garantia do direito à educação. “Não há dúvidas de que, em nossa sociedade conectada, o acesso à internet é um pressuposto para a concretização do direito à educação , o que se tornou mais evidente diante do contexto da pandemia, em que a necessidade de distanciamento social transferiu tarefas presenciais para o formato remoto”, declarou o ministro. 

“Não obstante a reabertura das escolas e a retomada das aulas presenciais, a pandemia de Covid-19 ainda é uma realidade, e o risco de interrupção das atividades em razão de surtos eventuais e de novas variantes não deve ser completamente descartado, como já se tem observado em outros países neste ano de 2022. Ademais, a dificuldade de acesso à internet por estudantes e professores da educação pública básica é um óbice ao pleno acesso à educação já há muitos anos, sendo um dos maiores desafios à concretização desse direito social na era digital. A pandemia apenas evidenciou essa realidade e acentuou o senso de urgência das autoridades para a resolução do problema”, argumentou. 

O acesso à internet é um direito humano e fundamental de crianças e adolescentes. Atualmente, o ambiente digital é um espaço de exercício de direitos e da cidadania em diferentes formas, possibilitando a expressão, o diálogo e o acesso a diferentes conteúdos e opiniões, e promove o desenvolvimento da educação, ampliando seu alcance, capacitando profissionais e oferecendo materiais pedagógicos e acesso a conhecimentos antes restritos às bibliotecas físicas. 

Além disso, os direitos de crianças e adolescentes gozam de absoluta prioridade. Por força do dever constitucional disposto no artigo 227 da Constituição Federal, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes devem prevalecer quando colidem com outros interesses, como o interesse econômico e o direito à livre iniciativa. Ainda, conforme o artigo 4º do Estatuto da Criança e Adolescente, a prioridade se aplica inclusive enquanto preferência na formulação e execução de políticas sociais públicas, bem como destinação privilegiada de recursos.

“Crianças deveriam estar sempre em primeiro lugar tanto nas políticas como nos orçamentos públicos, e essa foi a escolha que fizemos enquanto sociedade”, argumenta a sustentação de Ana Cifali. Confira na íntegra sua sustentação oral.

Foto destaca as grades de um presídio

Relatório Discursos parlamentares sobre adolescência e ato infracional, realizado pelo NEV-USP, com apoio do Instituto Alana, revela que, em 30 anos, o punitivismo deu o tom das proposições parlamentares, tendo a maioria como objeto a redução da maioridade penal e o aumento do tempo de internação de adolescentes

Adolescentes são sujeitos de direitos que estão em condição especial de desenvolvimento. Esse entendimento, sustentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ampara a necessidade de protegê-los contra qualquer ação que os prejudique. No entanto, em um período de 30 anos, 72,5% das proposições apresentadas por parlamentares no Congresso Nacional referentes a adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais têm teor punitivista. Ou seja, um ideal que aposta em penas duras e prisão como forma de punir quem é acusado de atos considerados ilícitos.

Esse dado faz parte da pesquisa Discursos parlamentares sobre adolescência e ato infracional, realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), com apoio do Instituto Alana, que mostra como as propostas legislativas refletem questões a respeito do tratamento de adolescentes envolvidos em supostos atos infracionais. 

O estudo faz uma análise quantitativa e qualitativa das propostas de alteração legal apresentadas no Congresso Nacional entre 1990 e 2020, partindo de buscas nos sites oficiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Para a pesquisa, foi selecionado um conjunto de palavras-chave – como “sistema socioeducativo”, “adolescente infrator” e “adolescente em conflito com a lei” – que permitisse identificar todas as proposições legislativas federais que abordam, centralmente ou não, temas relacionados a esses adolescentes. 

Ao todo, foram identificadas 338 proposições. Das proposições analisadas, 244 são de teor punitivista. Enquanto 29,3% referem-se ao aumento do tempo de internação e 24,3% à redução da maioridade penal, apenas uma pequena parte do total são as que propõem medidas justificadas pelo propósito de garantir os direitos dos adolescentes, como as relacionadas à proibição de revista vexatória em unidades de internação (0,9%) e a projetos que ampliam as garantias processuais e os direitos individuais dos adolescentes (2,7%).

“Com relação às propostas de redução da maioridade penal, identificamos 82, no total. A PEC em tramitação sobre esse tema é de 1993, então percebe-se que é um tipo de proposta antiga, orientado por um modelo utilizado para as políticas penais voltadas aos adultos, não sendo eficiente no que diz respeito à garantia da segurança da população e à redução da criminalidade”, comenta Bruna Gisi, coordenadora da pesquisa.

Antes do ECA, o Sistema de Justiça Juvenil era pautado pelo Código de Menores de 1979, promulgado durante a ditadura militar. A partir de 1990, com a regulamentação do Estatuto, o Brasil alinhou-se ao que estabelece a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, de 1989, e os adolescentes passaram a ser considerados sujeitos que devem ter direitos fundamentais assegurados e tratados com prioridade na formulação de políticas públicas.

“Debates públicos sobre os modos de tratamento de adolescentes, especialmente quando se atribui a prática de atos infracionais, seguem permeados por embates acirrados entre uma perspectiva punitivista e uma garantidora de direitos, especialmente quando surgem casos de grande repercussão midiática. E uma das esferas em que se pode observar essas disputas é a arena legislativa”, comenta Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana.

Do total das proposições, no que diz respeito às casas legislativas, 83,7% são de autoria de deputados e 16,3% de senadores. A maior parte das proposições sobre os temas relacionados aos adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais são de partidos considerados de direita (45,3%), contra 24,4% de partidos do centro e 24,4% de esquerda. Além disso, os estados do sudeste concentram a maioria dos casos: parlamentares de São Paulo foram responsáveis por 21,3% das proposições e os do Rio de Janeiro formularam 13,9% das propostas, concentrando quase 50% das proposições. 16% das proposições são de autores do centro-oeste, 14,8% do sul, 12,7% do nordeste e 6,5% da região norte.

Na análise da série histórica, também se observa um crescimento significativo ao longo dos anos analisados pela pesquisa. Ainda que não ocorra um crescimento contínuo ano a ano, se considerarmos a evolução em períodos de cinco anos, a curva indica um crescimento. Somente o intervalo entre 2015 e 2020 concentra 35,6% de todas as proposições.

“Com essa publicação, buscamos dar luz à garantia dos direitos dos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional, refutando premissas equivocadas que sustentam grande parte desses projetos de lei e reforçando a necessidade de uma justiça especializada que possa, além de responsabilizar, promover os direitos desses adolescentes”, diz Cifali.

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Logo do filme Brincar Livre - de dentro para fora. Abaixo, a imagem de uma mulher adulta puxando duas crianças que estão sentadas em uma grande folha de palmeira.

A pandemia do coronavírus mostrou que, mesmo com as restrições do período mais crítico de isolamento social, o brincar das crianças não parou. Ele continuou livre, potente e presente no cotidiano de muitas famílias e de suas casas. Mas, será que passados mais de dois anos desde o início da crise sanitária, o longo período de distanciamento social afetou a forma de brincar? 

O documentário Brincar Livre: de dentro para fora, novo lançamento do Território do Brincar, em parceria com o Instituto Alana, apresenta essa transição do brincar em tempos de flexibilização das medidas restritivas, agora com as crianças de volta ao espaço público, ao convívio social e à escola.

Entre maio e novembro de 2021, a equipe de pesquisadores do Território do Brincar entrevistou mensalmente 24 famílias da cidade de São Paulo sobre o que as crianças estavam brincando nesse período. O documentário apresenta um recorte dessa pesquisa, feito a partir da observação de pais, mães e avós no brincar das crianças. 

“Mesmo em situações de severas restrições sociais e espaciais, o brincar seguiu acontecendo. Um brincar que se manteve em estado de entrega e contemplação, de forma intimista, investigadora e ousada, e em conexão com as necessidades intrínsecas de cada criança, ainda que, em decorrência da pandemia, com sérias precariedades corporais e emocionais”, afirma a diretora do filme Renata Meirelles, que há mais de 20 anos pesquisa sobre brincadeiras infantis com o Território do Brincar. “Mais uma vez, o brincar revelou que funciona como um sistema de equilíbrio do ser, reafirmando o impulso da própria vida.”

Assista ao novo filme, que já está disponível para exibição gratuita no canal do Youtube do Território do Brincar:

O brincar em tempos de crise 

Em 2020, quando o mundo se deparou com a pandemia do coronavírus, o Território do Brincar elaborou uma nova maneira de observar o brincar das crianças. O cenário inédito de crise de saúde global trouxe enormes desafios logísticos e metodológicos. Em situação de isolamento social, longe do corpo a corpo e do registro direto das expressões infantis, a equipe conversou à distância com famílias para saber como aquela fase inicial da pandemia estava sendo vivida pelas crianças dentro de casa. 

O grupo de pesquisadores se dividiu para conversar com 55 famílias, que viviam em 12 países diferentes. A partir das conversas e das imagens recebidas pelos entrevistados, foi lançado em 2021 o documentário Brincar em Casa e um podcast homônimo, disponíveis gratuitamente em plataformas digitais.

“Essa pesquisa audiovisual é uma oportunidade para educadores aprenderem a reconhecer as necessidades das crianças e como elas atravessam os diversos momentos da vida coletiva. Aprender a olhar para os gestos, invenções e expressões infantis é essencial para a qualidade do vínculo entre crianças e adultos, sejam educadores ou famílias”, comenta Raquel Franzim, diretora de Educação e Culturas Infantis do Instituto Alana. 

Os pesquisadores revelaram que, no início da pandemia, feito um rio que enche e ocupa todo espaço até onde encontrar limite, as crianças entraram para dentro das casas preenchendo cada centímetro quadrado desses ambientes: debaixo das mesas, das camas, atrás da máquina de lavar, em cima do beliche, dentro dos armários, no telhado, no banheiro, no corrimão das escadas. “Não sobrou canto onde o corpo não coube, em que a brincadeira não chegasse. Uma infiltração máxima de cada canto, que evidencia a força de expansão do brincar”, afirma a diretora do documentário.

Com o agravamento da pandemia, os pesquisadores seguiram a investigação no modo remoto, com enfoque no tempo de isolamento e suas consequências no brincar das crianças. Em 2021, a equipe entrevistou mensalmente 24 famílias de São Paulo, com crianças de três a doze anos, de diferentes contextos socioeconômicos, residentes em diferentes regiões da cidade, vivendo em apartamentos, casas, condomínios, ocupação e em aldeia indígena urbana. 

Nesse período, foram feitas mais de 90 entrevistas, totalizando aproximadamente 80 horas de áudio, que foram transcritas, agrupadas em temas (como expressões corporais das crianças, o uso das telas, as reconquistas dos espaços públicos, as transformações corporais, entre outros) e analisadas. As famílias também enviaram imagens e vídeos do brincar de suas crianças. Entre novembro de 2021 e março de 2022, a equipe de filmagem do Território do Brincar captou imagens de seis dessas famílias. Em todas as gravações, cumpriu-se um rigoroso protocolo de biossegurança contra a Covid-19.

“Com tantas demandas para lidar, o convite feito para as famílias observarem o que as crianças estavam brincando era, para alguns, penoso ou distante de uma realidade cotidiana, tomada pelo peso da pandemia, as angústias da solidão, o estresse do excesso de trabalho e as mortes de amigos e familiares que foram vividas e narradas”, afirma Renata Meirelles. 

Porém, durante o processo de escuta, estar presente e ativo na observação do brincar era o suficiente para transformar algo no relacionamento desses adultos com as crianças. Em alguns casos, só ao perceberem o interesse dos pesquisadores na descrição do brincar, essas famílias se davam conta do quanto isso não era um hábito, mas poderia vir a ser. “Eu me percebo prestando atenção em coisas de uma maneira diferente. É mudar o olhar da casa, mudar o olhar dos adultos e dar mais chance, inclusive, para o brincar ganhar sentido para a família toda”, comentou a entrevistada Juliana Garrido, mãe de duas crianças.

Os pesquisadores relataram que, com o passar do tempo, as crianças apresentaram uma variação de interesses no brincar, acompanhando o contexto geral do isolamento e o próprio crescimento natural delas. Mesmo assim, em nenhum momento o brincar cessou ou deixou de acontecer, mesmo que tenha se mostrado mais restrito em seus aspectos sociais, emocionais e corporais.

Lá fora

Quando a volta aos espaços públicos passou a se tornar uma realidade, as famílias iniciaram pequenas incursões em ambientes externos. Mas não foi simples nem fácil voltar a sair, mesmo que aos poucos. A pesquisa apontou que as famílias caminharam mais pelo bairro e exploraram mais as praças por perto de casa, tudo com o devido distanciamento e muitas precauções. Pais e mães notaram o quanto as crianças confinadas se distanciaram de um corpo mais ágil e habilidoso e perderam o traquejo social.

Ao contarem sobre esse novo período de sair para fora, muitas vezes as falas das famílias traziam o verbo “respirar”. A imagem do rio enchendo todos os espaços das casas, no momento inicial da pandemia, ganhava características aéreas nessa fase de transição para fora. O desejo era tirar a cabeça para fora da água, ou da casa que foi invadida pela enchente e estava sufocando a quem ali morava, para dar os primeiros respiros no espaço externo.

Em todos os registros, transitando entre todas as circunstâncias vividas na pandemia e na transição para fora, lá esteve o brincar, ainda que fragilizado, enfraquecido em tônus, em relações sociais e em expressões verbais ou não verbais. O brincar não parou. Não só não parou, como continuou nutrindo a criança para o seu desenvolvimento integral. 

“Brincar é um dos maiores fatores de promoção da saúde integral das crianças. Com a pandemia e seus efeitos severos na vida das crianças, ele se mostrou ainda mais fundamental, tanto quanto atividades essenciais como se alimentar, dormir e aprender. Todas as ações em casa, nas escolas, nas cidades e no governo devem privilegiar o brincar livre das crianças, de preferência em espaços públicos, ao ar livre e na natureza”, finaliza Raquel Franzim.

Saiba mais sobre a pesquisa no site do Território do Brincar.

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